História e Património das "Terras de Algodres"
(concelho de Fornos de Algodres)
ed. Nuno Soares
Contacto: algodrense(at)sapo.pt
Terça-feira, 12 de Agosto de 2008
Publicações recentes (12)

 

 

BDHistFornos.jpg

 

(in Notícias Sábado, nº. 135, p. 40   -   revista distribuída

 

com o jornal Diário de Notícias, de 09 de Agosto de 2008) 

 



publicado por algodrense às 07:05
link desta entrada | comentar | ver comentários (3) | favorito

Quinta-feira, 7 de Agosto de 2008
O assassínio do abade de Matança (1841).

 

 

De entre os incidentes ocorridos no concelho de Fornos de Algodres, relacionados com violências praticadas durante as lutas para a instauração do regime liberal e as convulsões sociais que se seguiram[i], teve especial repercussão o assassínio, em 1841, do abade da freguesia de Matança, perpetrado pela guerrilha dos "Garranos", chefiada por António da Costa Macário, por alcunha "o Caca".

 

Igreja-Matanca.jpg

 

(Igreja paroquial de Matança  -  foto tirada daqui)

 

 

 

Monsenhor Pinheiro Marques, nas páginas que dedicou à história daquela freguesia, relata o sucedido da seguinte forma[ii]:

 

 "(...) A quando das lutas liberais deu-se nesta terra um acontecimento horroroso de canibalismo político.

             Como o abade, de nome Garcia, ou Barros, professasse ideias miguelistas, numa reacção liberal os «cacarras do caco» vindos dos lados da serra da Estrêla, assaltaram-no na igreja, em dia de S. Bartolomeu, no próprio momento em que celebrava missa; arrancaram-no do altar e, revestido dos paramentos litúrgicos, fizeram-no percorrer de joelhos o ádro da igreja, ao mesmo tempo que lhe foram cortando as orelhas os dedos das mãos, para afinal o acabarem de matar no caminho de Algodres, arrancando-lhe do peito aberto o coração vivo e palpitante. (Páginas de Sangue, por Sousa e Costa, pág. 53).(...)".

 

O conhecimento que temos deste episódio é ainda baseado, quase exclusivamente, na abundante bibliografia, de desigual interesse e rigor histórico, dedicada aos guerrilheiros e salteadores beirões do séc. XIX, carecendo de ser aferido à luz de novas e mais aprofundadas investigações[iii].  Em todo o caso, tudo indica que a versão dos factos apresentada por Mons. Pinheiro Marques não é exacta, desde logo no que se refere ao posicionamento político dos assassinos e da vítima, o que é tanto mais de estranhar quando a fonte que indica (Páginas de Sangue, de Sousa Costa) é bastante clara a esse respeito[iv]:

 

SousaCosta1ed.JPG

 

 "(...) A scena da feira dos Carvalhaes irrita até á loucura a ferocidade dos clavineiros do Cáco.

 

Aparelhados de novas armas, convindo na urgência de recuperar o prestígio abatido, procuram novas vítimas - prometendo a Deus e ao Diabo, para melhor oportunidade, livrar a terra portugueza da sombra pecaminosa do Jaime, entregar ás caldeiras do inferno a alma abominável do maçon.

 

O abade da freguezia de Matança, no circumvizinho concelho de Fornos de Algodres, pertencia ao círculo excomungado dos clerigos ferreteados de malhadice.

 

Era o abade de Matança quem devia servir á expiação, quem devia levantar-lhes as amolgadas prosápias na ara votiva do sacrifício.  Foi por isso a Matança que se encaminharam, no domingo seguinte ao daquela scena.  Ganharam o povoado á hora em que o abade, de alva e casula, entre as velas acesas do altar mór, celebrava na matriz o ofício solene da missa.

 

Para o religiosismo fanatico do Cáco egreja em que celebre sacerdote scismatico, desafecto a D. Miguel, desobedinte aos bispos apostólicos, é egreja maculada de profanação, perdida para o culto de Deus e indigna do respeito dos homens.  Assim, Antonio Cáco, miguelista-apostolico, não hesita em entrar na egreja com os do seu bando, em romper atravez da massa sussurrante dos fieis, e em arrancar do altar o abade paramentado.  E cá fóra, no meio do espanto dos paroquianos, obriga-o a percorrer de joelhos a avenida fronteira ao adro, cortando-lhe os dedos, decepando-lhe as orelhas, arrancando-lhe, por ultimo, do peito rasgado, o coração vivo.(...)"[v].

 

Não tendo cabimento fazer aqui uma análise do que tem sido apurado sobre a vida de António Macário, as acções dos "Garranos" ou o contexto em que se inseriram[vi], diremos apenas que não há dúvidas quanto à sua militância no campo miguelista ou ao ódio que votava aos clérigos liberais (como afirma Sousa Costa no texto acima reproduzido)[vii][viii].

 

Por outro lado, a data em que o abade foi assassinado não terá sido o dia de S. Bartolomeu (que se comemora, salvo erro, em 24 de Agosto).  O abade de Matança terá sido assassinado no mês de Fevereiro de 1841[ix], pouco antes do dia 28 de Fevereiro, data em que o Caca foi cercado num lagar de azeite sito em Vila de Mato, junto a Midões, onde veio a morrer após dois dias de intenso tiroteio[x].

 

 

O célebre guerrilheiro liberal João Brandão, também se referiu, nas suas memórias, ao assassinato do abade de Matança, em moldes que justificam uma breve análise adicional. 

 

Numa  -  extensa!  -  "Relação dos ferimentos e mortes praticados na província da Beira, desde 1834", referindo-se à "quadrilha" do "Caca", afirma que: "A mesma quadrilha assassinou o abade de Matança, obrigando-o a andar de joelhos, estrada abaixo, estrada acima, e cortando-lhe uma orelha, um dedo, e tirando-lhe o coração!!!"[xi].  Porém, noutro capítulo dessa obra, procurou atribuir a autoria moral deste crime ao notável miguelista Estanislau Xavier de Pina, de Várzea de Meruge, nos seguintes termos: "O bondoso abade da Matança, cuja morte ainda está impressa na memória de todos os Beirões, foi a seu mando assassinado pela sua quadrilha junto a Terrozelo, obrigando-o a andar de joelhos estrada abaixo, estrada acima; e aqui lhe cortaram um dedo, acolá uma orelha; ali o picaram, e aqui finalmente lhe tiraram o coração!!!"[xii].

 

Não são, todavia, conhecidos (tanto quanto sabemos) quaisquer elementos que possam indiciar o envolvimento de Estanislau de Pina no assassínio do abade de Matança, nas circunstâncias referidas, ou em diversos outros crimes que João Brandão lhe atribuiu, de forma julgada pouco plausível por Dias Ferrão[xiii].  A não se tratar de um equívoco, não é de excluir que João Brandão tenha procurado denegrir a reputação de um adversário político, que acabou por morrer às suas mãos, em 8 de Janeiro de 1850, em condições, no mínimo, pouco claras...[xiv]

 

Muito mais haverá por certo a investigar sobre o crime que vitimou o abade de Matança, designadamente na documentação coeva[xv].  Aliás, a história da actuação de guerrilheiros e salteadores nas "Terras de Algodres", durante o séc, XIX (para não falar de outros períodos...), está ainda por fazer, sendo conhecidas, apenas, algumas breves referências a episódios isolados[xvi].

 

 

 

Bibliografia:

 

 

 

BONIFÁCIO, M. Fátima, (2002),

 

A segunda ascensão e queda de Costa Cabral 1847-1851, Lisboa, Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa.

 

BRANDÃO, João, (1990),

 

Apontamentos da vida de João Brandão : por ele escritos nas prisões do Limoeiro envolvendo a história da Beira desde 1834, Lisboa, Vega   (1ª. ed. em 1870).

 

CARVALHO, Joaquim Martins de, (1890),

 

Os assassinos da Beira : novos apontamentos para a historia contemporanea, Coimbra, Imprensa da Universidade.

 

COSTA, Sousa, (s/d),

 

Paginas de sangue : Brandões, Marçais & C.ª, Lisboa, Portugal-Brasil, Limitada   (1ª. ed. em 1919).

 

FERRÃO, J. M. Dias, (1928),

 

João Brandão, Porto, Litografia Nacional.

 

FERREIRA, Maria de Fátima Sá e Melo, (2002),

 

Rebeldes e insubmissos : resistências populares ao liberalismo (1834-1844), Porto, Edições Afrontamento.

 

MARQUES, Mons. Pinheiro, (1938),

 

Terras de Algodres (concelho de Fornos), Lisboa, Câmara Municipal de Fornos de Algodres.

 

 


 

Notas:

 

[i] Cf. MARQUES, 1938, pp. 202-211.

 

[ii] Cf. MARQUES, 1938, p. 301.

 

[iii] Cf. FERREIRA, 2002, pp. 216 e 238.

 

[iv] Cf. COSTA, s/d, pp. 141-142.

 

[v] Como acima se referiu, é seguro que, em vida, António Macário era conhecido como "Caca" e não "Caco" como alguns lhe vieram a chamar.  Dias Ferrão (FERRÃO, 1928, p. 95, nota 1) alvitra que Sousa Costa lhe chamou "Cáco" em Páginas de Sangue  "... certamente para não maguar os ouvidos dos seus leitores com a palavra Caca" ...

 

[vi] A esse respeito, v., em especial: CARVALHO, 1890, pp. 115-134; FERRÃO, 1928, pp. 95-114 e FERREIRA, 2002, pp. 236-253 e p. 543, quadro 30.

 

[vii] É certo que alguns defendem que após a derrota da "revolta da Serra" e a realização do chamado "convénio de Gavinhos", na sequência do qual os notáveis e chefes mais destacados das guerrilhas miguelistas da Beira Alta abandonaram formalmente a luta, o miguelismo de que se reclamava o Caca não passava de um pretexto para justificar a continuação de uma vida de banditismo, por parte de "operacionais" das antigas guerrilhas que não se conformavam com o regresso às suas anteriores profissões (cf., por ex., CARVALHO, 1890, p. 120 ou FERRÃO, 1928, pp. 87-97).  No dizer impressivo de Dias Ferrão: "Já não eram políticos que se juntavam. Eram bandidos que se reuniam" (FERRÃO, 1928, p. 93).  Porém, como realça a Prof. Maria de Fátima Ferreira, entre outros elementos, muitas das acções atribuídas ao grupo chefiado por António Macário confirmam as suas motivações políticas, designadamente as que tiveram como alvo autoridades locais ou - como foi o caso de Matança - clérigos liberais, considerados "cismáticos", em relação aos quais manifestou um ódio particularmente intenso, tendo assassinado vários com extrema crueldade (cf. FERREIRA, 2002, pp. 243-245).

 

[viii] Sobre o "cisma" que então dividia o clero da diocese de Viseu (à semelhança do que se passava noutras dioceses), na sequência do exílio do bispo D. Francisco Alexandre Lobo, afecto a D. Miguel e da imposição, pelo Governo, de um vigário capitular para dirigir a diocese, v.: MARQUES, 1938, pp. 207-208; FERRÃO, 1928, pp. 77-81 e FERREIRA, 2002, p. 245 e pp. 401-424 (em especial pp. 404, 414-419 e 423-424).

 

[ix] Cf. CARVALHO, 1890, p. 130; no mesmo sentido, FERRÃO, 1928, p. 102 e FERREIRA, 2002, pp. 245.

 

[x] Cf., por ex., BRANDÃO, 1990, p. 13; CARVALHO, 1890, pp. 131-134 e FERRÃO, 1928, pp. 107-111.

 

[xi] Cf. BRANDÃO, 1990, p. 212.

 

[xii] Cf. BRANDÃO, 1990, pp. 51-52.

 

[xiii] Cf. FERRÃO, 1928, p. 99, nota 1.

 

[xiv] V., com apreciações não coincidentes, CARVALHO, 1890, pp. 111-114 e FERRÃO, 1928, pp. 154-161.

 

[xv] A identidade do pároco assassinado, por ex., não aparece mencionada.  Na TT OnLine está disponível uma carta de 08-08-1842 (com a ref. RGM/H/200359), com a nomeação de Manuel de Barros para pároco de Matança (Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Registo Geral de Mercês, D. Maria II, liv. 18, fl. 73-73v). Trata-se, provavelmente, da nomeação do sucessor do abade assassinado (a confirmar).

 

[xvi] Por ex., numa carta de 1-6-1846, dirigida por João Rebelo da Costa Cabral ao irmão, Conde de Tomar, que se encontrava refugiado em Espanha, após a saída do Governo, em Maio desse ano, na sequência da revolta da "Maria da Fonte", é mencionada a insegurança que os membros da família sentiam em Fornos de Algodres e referido que a "Mãe" sofreu "insultos da guerrilha de Gouveia" (Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Arquivo da família Costa Cabral, parte A-I, nº. 28 - cit. in BONIFÁCIO, 2002, p. 21, notas 13 e 14).  Mons. Pinheiro Marques dá também conta de um assalto, em 1870, ao solar da família Camelo Fortes, em Algodres, por um grupo de assaltantes armados, "...tendo havido grande fusilaria entre o povo e os assaltantes, de que resultaram muitos feridos..." (cf. MARQUES, 1938, p. 227).

 



publicado por algodrense às 07:10
link desta entrada | comentar | ver comentários (10) | favorito

Sexta-feira, 1 de Agosto de 2008
Brevemente, numa livraria perto de si…

 

 

capa_livro_Padre_Antonio_Vieira.jpg

 

 

 

o novo livro da algodrense Amélia Pinto Pais.

 



publicado por algodrense às 07:02
link desta entrada | comentar | ver comentários (2) | favorito

pesquisar
 
Julho 2022
Dom
Seg
Ter
Qua
Qui
Sex
Sab

1
2

3
4
5
6
7
8
9

10
11
12
13
14
15
16

17
18
19
20
21
22
23

24
25
26
27
29
30

31


entradas recentes

"Estudantina de Jayme de ...

"Roteiro pré-histórico de...

"Algodres - a aldeia de M...

...

Sobral Pichorro e Fuínhas...

...

Freguesia de Muxagata no ...

...

Freguesia de Maceira no C...

...

links
temas

abreviaturas

algodres

alminhas

anta da matança

anta de cortiçô

bibliografia (a - f)

bibliografia (g - r)

bibliografia (s - z)

bibliografia algodrense

capelas

casal do monte

casal vasco

castro de santiago

cortiçô

crime e castigo

documentos

estatuto editorial

estelas discóides

figueiró da granja

fornos de algodres

fortificações

fraga da pena

fuínhas

heráldica

humor

índice

infias

invasões francesas

juncais

leituras na rede

lendas e tradições

maceira

marcas mágico-religiosas

matança

migração do blog

mons. pinheiro marques

muxagata

notícias de outros tempos

personalidades

pesos e medidas

publicações recentes

queiriz

quinta da assentada

ramirão

rancozinho

sepulturas escavadas na rocha

sobral pichorro

toponímia

vias romanas

vila chã

todas as tags

arquivos

Julho 2022

Maio 2022

Julho 2020

Agosto 2015

Julho 2015

Abril 2015

Março 2015

Fevereiro 2015

Janeiro 2015

Dezembro 2014

Novembro 2014

Outubro 2014

Setembro 2014

Agosto 2014

Julho 2014

Junho 2014

Maio 2014

Abril 2014

Março 2014

Janeiro 2014

Dezembro 2013

Novembro 2013

Setembro 2013

Agosto 2013

Março 2013

Maio 2012

Fevereiro 2012

Janeiro 2012

Dezembro 2011

Novembro 2011

Outubro 2011

Setembro 2011

Agosto 2011

Julho 2011

Junho 2011

Maio 2011

Abril 2011

Março 2011

Dezembro 2010

Novembro 2010

Outubro 2010

Setembro 2010

Agosto 2010

Julho 2010

Junho 2010

Maio 2010

Abril 2010

Março 2010

Fevereiro 2010

Janeiro 2010

Dezembro 2009

Novembro 2009

Outubro 2009

Setembro 2009

Agosto 2009

Julho 2009

Junho 2009

Maio 2009

Abril 2009

Março 2009

Fevereiro 2009

Janeiro 2009

Dezembro 2008

Novembro 2008

Outubro 2008

Setembro 2008

Agosto 2008

Julho 2008

Junho 2008

Maio 2008

Abril 2008

Março 2008

Fevereiro 2008

Janeiro 2008

Dezembro 2007

Novembro 2007

Outubro 2007

Setembro 2007

Agosto 2007

Julho 2007

Junho 2007

Maio 2007

Abril 2007

Março 2007

Fevereiro 2007

Janeiro 2007

Dezembro 2006

Novembro 2006

Outubro 2006

Setembro 2006

Agosto 2006

Julho 2006

Junho 2006

Maio 2006

Abril 2006

Março 2006

Fevereiro 2006

Janeiro 2006

Dezembro 2005

Novembro 2005

Outubro 2005

Setembro 2005

Agosto 2005

Julho 2005

Junho 2005

Maio 2005

blogs SAPO
mais sobre mim
subscrever feeds
Redes

Academia

Facebook

Twitter

LinkedIn

Instagram