Postal, s/d - ed. Ocogravura.
(colaboração de João Rocha Nunes)
Em 1708, João Osório Beltrão, residente em Sobral Pichorro, arciprestado de Pena Verde, advogado, graduado em Cânones pela Universidade de Coimbra e familiar do S. Ofício[i], veio a Viseu pressionar o procurador da diocese para que recusasse a renovação da carta de cura do Sobral, anexa de Algodres, ao padre Francisco da Fonseca. Na prática, João Osório Beltrão queria ver o pároco de Sobral fora da localidade.
As desinteligências entre ambos seriam graves, embora se desconheçam os motivos, uma vez que Beltrão havia mesmo movido um processo – crime no auditório eclesiástico de Viseu ao pároco sem, no entanto, ter obtido quaisquer resultados a seu favor. O bispo de Viseu, Jerónimo Soares, não atendeu às súplicas de Osório Beltrão e a carta de cura acabou por ser renovada. Beltrão não desiste e recorre à jurisdição metropolita de Braga, tendo obtido no juízo provincial sentença favorável. Como o pároco continuava a exercer o múnus na freguesia, o arcebispo envia vários oficiais de justiça à localidade, com grande escândalo da população de Sobral, para efectivar a prisão do clérigo, sendo este posteriormente encerrado no aljube de Braga [ii]. Tudo isto feito sem que o bispo de Viseu tivesse conhecimento.
A mitra de Viseu achou-se “vexada e oprimida” pela actuação do poder metropolita de Braga, por este ter agido sem haver informado o prelado diocesano. O recurso aos tribunais da coroa acabou por ser a solução encontrada pelo bispo na defesa da jurisdição episcopal. Jerónimo Soares foi, contudo, cuidadoso. Antes de iniciar o processo, pediu um parecer, em 21 de Junho de 1708, a Pinto Teixeira Morais, jurista do Porto[iii].
O processo arranca definitivamente no juízo secular tendo os agravos, a pedido do bispo de Viseu, uma vez que este desconfiava dos oficiais de Braga, sido levados desta cidade para o tribunal da Relação do Porto por um escrivão da Coroa[iv]. Os tribunais da coroa acabaram por dar razão ao bispo de Viseu em todo este processo, tendo o pároco podido regressar livremente à freguesia. Ao invés, foram condenados os comportamentos dos oficiais de Braga e a própria arquidiocese, uma vez que se considerou que a prisão do cura foi feita sem se ter dado prévio conhecimento do facto ao poder episcopal de Viseu o que era, como reclamava a mitra de Viseu, uma clara usurpação da jurisdição ordinária[v].
O padre Fonseca esteve fora da freguesia por um período de cerca de um ano. Em Abril de 1709 acabou por regressar ao Sobral Pichorro[vi]. Até 30 de Setembro de 1719, ano em que morreu, Francisco da Fonseca foi padre na paróquia do Sobral, sendo sepultado na capela - mor da igreja da freguesia[vii]. João Osório Beltrão faleceu no dia 19 de Março de 1711. Beltrão acabaria, assim, por ter de conviver com o pároco no decurso dos seus últimos dois anos de vida[viii].
Uma das marcas da acção de Osório Beltrão é a capela do Solar dos Beltrão, situada em pleno centro da localidade de Sobral Pichorro. Este templo foi edificado por Maria Caetana, mulher de João Osório Beltrão, por determinação testamentária do marido[ix]. Embora a edificação de templos particulares tenha sido uma prática generalizada no decurso da época moderna - em virtude da afirmação de novas formas de piedade de natureza individual e práticas sacramentais - os motivos que presidiram à erecção desta capela podem igualmente ter tido origem nas discórdias havidas (João Osório Beltrão versus Francisco da Fonseca). De notar, que um dos motivos alegados para a erecção de capelas particulares relevava da distância entre o espaço habitacional e a Igreja Matriz das freguesias. Nos locais isolados, distantes da Igreja paroquial, o tempo que se gastaria a efectivar o percurso poderia ser impeditivo do acesso às práticas sacramentais e ofícios divinos. Ora, no caso presente, a capela foi edificada a escassos metros da Igreja de Sobral Pichorro. Este facto sugere, para além da afirmação social subjacente à edificação de templos particulares, que a alegada discórdia entre uma família e o pároco local originou uma ruptura geradora da criação de um novo espaço eclesiástico. Este espaço disputaria com a Igreja Matriz um lugar de relevo no seio de uma pequena localidade. Com efeito, os templos eram locais que poderiam competir directamente com as Igrejas das localidades onde se encontravam inseridos, uma vez que tal como qualquer igreja estavam habilitados para a celebração dos ofícios divinos e práticas sacramentais. Os templos particulares eram ainda obrigados a ter porta aberta para a rua pública, podendo e devendo ser espaços consagrados ao público e não apenas um local reservado à família proprietária do imóvel. Assim, um conflito entre um pároco e um leigo e que mais tarde motivou uma querela grave entre a diocese de Viseu e a arquidiocese de Braga pode, também, ter estado na origem da edificação de uma capela particular.
Foi a referida capela, à semelhança de todos os templos edificados na época, dotada com algumas propriedades instituídas por Maria Caetana: uma “regada chamada regada de Isabel Dias que parte com a ribeira do nascente e do poente com a estrada para a regada e com a água do ribeiro da Mata que vale bem de compra 50 mil réis…uma regada na parte de cima do mesmo sítio que vale muito bem 50 mil réis”.
Curiosamente, e “satisfazendo o despacho do senhor bispo de Viseu”, foi o cura de Sobral, Francisco da Fonseca, o eterno inimigo de João Osório Beltrão, que procedeu à inspecção do templo no dia 10 de Outubro de 1715[x]. Para este clérigo “a capela está bem dourada retábulo pintado com suas imagens muito decentes e devotas tem mais o altar muito bem composto com suas toalhas e frontais bem mais um cálice de prata com sua patena e tem mais a pedra de ara, castiçais e o mais necessário para se dizer missa e celebrar e tudo está com muita suficiência e limpeza… tem mais hum missal com suas galhetas”[xi].
Francisco da Fonseca, cura do Sobral, foi também o pároco que benzeu a capela do solar dos Beltrão, depois do bispo lhe ter dado a respectiva autorização no dia 4 de Novembro de 1715[xii]. Mal imaginaria João Osório Beltrão que o pároco que ele não queria na localidade seria o mesmo que lhe sagraria a capela particular que deixou em testamento.
O solar dos Beltrão, trezentos anos depois da sua edificação, já há muito que deixou de servir a família e mesmo a localidade. Obra de inegável valor artístico, tem permanecido nos últimos anos votado ao abandono. Se as querelas pessoais ou o desejo da afirmação social que presidiram à sua edificação já há muito que haviam sido esquecidas, as incúrias do homem e a passagem inexorável do tempo têm contribuído para que se apaguem os vestígios materiais de uma época na vida de Sobral Pichorro.
[i] Pinheiro Marques, Terras de Algodres, ed. Câmara Municipal de Fornos de Algodres, 1988, p. 241.
[ii] ADV (Arquivo Distrital de Viseu), Câmara Eclesiástica (registos), 11/56, fl. 145.
[iii] ADV, Documentos Avulsos do Cabido,“ Carta de Pinto Teixeira sobre uns autos de agravo” Cx. 14– N.º 88.
[iv] ADV, Câmara Eclesiástica, registos, 11/56, fol. 145v-146.
[v] ADV, Câmara Eclesiástica, registos, 11/56, fol. 145v-146.
Dedicada ao meu amigo Albino Cardoso, aqui fica a foto possível de uma outra inscrição, existente em Algodres (na torça da porta de uma palheira) e que parece ser mais uma representação do IHS referido na entrada anterior.
Mons. Pinheiro Marques inventariou algumas inscrições afins nas Terras de Algodres (cf. MARQUES, 1938, pp. 27 e 300). Mário Nunes (NUNES, 1989, p. 84) registou outra existente em Casal do Monte. Outras existirão certamente, como a que Albino Cardoso recentemente revelou no seu blog (entrada de 22 de Agosto p.p.).
Aproveito para lançar mais um repto, aos algodrenses e visitantes: este blog fica à espera das vossas notícias e/ou fotografias de inscrições similares, para que o inventário das existentes nas Terras de Algodres se vá completando.
Bibliografia: v. entrada de 2005-05-09.
Na torça de uma porta, em Algodres, estão gravadas as letras IHS, estando o H central carregado com uma cruz (parece existir ainda, pelo menos, mais uma cruz, gravada lateralmente).
Embora a abreviatura IHS apareça por vezes na epigrafia portuguesa com outros significados (por ex. “Joanes”), quando gravada isoladamente e por esta forma representa muito provavelmente as iniciais das palavras latinas Iesus Hominum Salvator (“Jesus Salvador dos Homens”). Simboliza Cristo e o sacramento da Eucaristía.
O seu uso foi e é muito comum em edifícios religiosos, em paramentos e alfaias litúrgicas, em portas de sacrário, ...
Especialmente nos séculos XVII e XVIII, foi também vulgar a sua utilização em construções particulares, como manifestação de religiosidade popular, à semelhança de outras incentivadas pelo espírito da Contra-Reforma.
Esta inscrição de Algodres datará, provavelmente, dessa época.
(colaboração de Albino Cardoso)
Continuando a focar as evidências de vias romanas no concelho de Fornos de Algodres, vou-me hoje referir à ponte de entrada da Matança, sobre a ribeira das Forcadas. Já na entrada anterior me referi à via Viseu - Trancoso, que entrava na Matança pela ponte de dois arcos sobre o rio Carapito. Ora se esta via em direcção ás Forcadas era na direcção Este - Oeste, para onde seguiria a estrada que junto à igreja atravessava a referida ponte de um arco, em direcção Norte -Sul?
Sempre tenho lido ou ouvido que em Infias se cruzavam ou bifurcavam duas estradas romanas, no entanto, em trabalhos melhor documentados, só há referência à estrada que de Viseu se dirigia a Celorico, por Infias e Fornos. Embora sem certezas absolutas, creio que a referida ponte servia uma estrada secundária, que passando por Furtado (onde existe uma ara romana) e Rancozinho, provavelmente "villae" romanas, se dirigia a Infias.
É de supor, também, a existência de uma outra que ligaria Algodres (onde recentemente foram encontradas moedas e outros vestígios romanos) a Celorico por "Cortiçolo" (Cortiçô de Algodres), "Vila em terra cham" (Vila Chã de Algodres) e "Muxigoata" (Muxagata de Algodres), "vllae agricolas". Esta ligaria à anterior provavelmente no Rancozinho, ou de aí viria a Algodres, de onde seguiria a Infias.
Estudando a toponímia tem-se chegado à conclusão que o topónimo "Forcadas" derivará de um entroncamento, ou "forca viária". Sendo assim e para cobrir todas as conhecidas evidências romanas no nosso município, faltaria uma via a ligar a Queiriz, onde foram encontradas lápides e aras romanas, havendo ainda hoje restos de calçadas e uma construção identificada por: "Castelo" que se supõe ser uma estrutura defensiva datando da romanização.
Essa via secundária sairia da já referida via Viseu - Trancoso e "forcaria" nas Forcadas em direcção a Maceira e Queiriz, entroncando na via Braga - Egitânia - Mérida, já no território do actual concelho de Trancoso.
Haveria provavelmente alguns outros caminhos a ligar as várias "villae" dos quais há ainda alguns vestígios, mas os referidos deveriam ter sido os principais, nas mais tarde chamadas: "Terras de Algodres".
2005-12-05
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