(in Notícias Sábado, nº. 135, p. 40 - revista distribuída
com o jornal Diário de Notícias, de 09 de Agosto de 2008)
De entre os incidentes ocorridos no concelho de Fornos de Algodres, relacionados com violências praticadas durante as lutas para a instauração do regime liberal e as convulsões sociais que se seguiram[i], teve especial repercussão o assassínio, em 1841, do abade da freguesia de Matança, perpetrado pela guerrilha dos "Garranos", chefiada por António da Costa Macário, por alcunha "o Caca".
(Igreja paroquial de Matança - foto tirada daqui)
Monsenhor Pinheiro Marques, nas páginas que dedicou à história daquela freguesia, relata o sucedido da seguinte forma[ii]:
"(...) A quando das lutas liberais deu-se nesta terra um acontecimento horroroso de canibalismo político.
Como o abade, de nome Garcia, ou Barros, professasse ideias miguelistas, numa reacção liberal os «cacarras do caco» vindos dos lados da serra da Estrêla, assaltaram-no na igreja, em dia de S. Bartolomeu, no próprio momento em que celebrava missa; arrancaram-no do altar e, revestido dos paramentos litúrgicos, fizeram-no percorrer de joelhos o ádro da igreja, ao mesmo tempo que lhe foram cortando as orelhas os dedos das mãos, para afinal o acabarem de matar no caminho de Algodres, arrancando-lhe do peito aberto o coração vivo e palpitante. (Páginas de Sangue, por Sousa e Costa, pág. 53).(...)".
O conhecimento que temos deste episódio é ainda baseado, quase exclusivamente, na abundante bibliografia, de desigual interesse e rigor histórico, dedicada aos guerrilheiros e salteadores beirões do séc. XIX, carecendo de ser aferido à luz de novas e mais aprofundadas investigações[iii]. Em todo o caso, tudo indica que a versão dos factos apresentada por Mons. Pinheiro Marques não é exacta, desde logo no que se refere ao posicionamento político dos assassinos e da vítima, o que é tanto mais de estranhar quando a fonte que indica (Páginas de Sangue, de Sousa Costa) é bastante clara a esse respeito[iv]:
"(...) A scena da feira dos Carvalhaes irrita até á loucura a ferocidade dos clavineiros do Cáco.
Aparelhados de novas armas, convindo na urgência de recuperar o prestígio abatido, procuram novas vítimas - prometendo a Deus e ao Diabo, para melhor oportunidade, livrar a terra portugueza da sombra pecaminosa do Jaime, entregar ás caldeiras do inferno a alma abominável do maçon.
O abade da freguezia de Matança, no circumvizinho concelho de Fornos de Algodres, pertencia ao círculo excomungado dos clerigos ferreteados de malhadice.
Era o abade de Matança quem devia servir á expiação, quem devia levantar-lhes as amolgadas prosápias na ara votiva do sacrifício. Foi por isso a Matança que se encaminharam, no domingo seguinte ao daquela scena. Ganharam o povoado á hora em que o abade, de alva e casula, entre as velas acesas do altar mór, celebrava na matriz o ofício solene da missa.
Para o religiosismo fanatico do Cáco egreja em que celebre sacerdote scismatico, desafecto a D. Miguel, desobedinte aos bispos apostólicos, é egreja maculada de profanação, perdida para o culto de Deus e indigna do respeito dos homens. Assim, Antonio Cáco, miguelista-apostolico, não hesita em entrar na egreja com os do seu bando, em romper atravez da massa sussurrante dos fieis, e em arrancar do altar o abade paramentado. E cá fóra, no meio do espanto dos paroquianos, obriga-o a percorrer de joelhos a avenida fronteira ao adro, cortando-lhe os dedos, decepando-lhe as orelhas, arrancando-lhe, por ultimo, do peito rasgado, o coração vivo.(...)"[v].
Não tendo cabimento fazer aqui uma análise do que tem sido apurado sobre a vida de António Macário, as acções dos "Garranos" ou o contexto em que se inseriram[vi], diremos apenas que não há dúvidas quanto à sua militância no campo miguelista ou ao ódio que votava aos clérigos liberais (como afirma Sousa Costa no texto acima reproduzido)[vii][viii].
Por outro lado, a data em que o abade foi assassinado não terá sido o dia de S. Bartolomeu (que se comemora, salvo erro, em 24 de Agosto). O abade de Matança terá sido assassinado no mês de Fevereiro de 1841[ix], pouco antes do dia 28 de Fevereiro, data em que o Caca foi cercado num lagar de azeite sito em Vila de Mato, junto a Midões, onde veio a morrer após dois dias de intenso tiroteio[x].
O célebre guerrilheiro liberal João Brandão, também se referiu, nas suas memórias, ao assassinato do abade de Matança, em moldes que justificam uma breve análise adicional.
Numa - extensa! - "Relação dos ferimentos e mortes praticados na província da Beira, desde 1834", referindo-se à "quadrilha" do "Caca", afirma que: "A mesma quadrilha assassinou o abade de Matança, obrigando-o a andar de joelhos, estrada abaixo, estrada acima, e cortando-lhe uma orelha, um dedo, e tirando-lhe o coração!!!"[xi]. Porém, noutro capítulo dessa obra, procurou atribuir a autoria moral deste crime ao notável miguelista Estanislau Xavier de Pina, de Várzea de Meruge, nos seguintes termos: "O bondoso abade da Matança, cuja morte ainda está impressa na memória de todos os Beirões, foi a seu mando assassinado pela sua quadrilha junto a Terrozelo, obrigando-o a andar de joelhos estrada abaixo, estrada acima; e aqui lhe cortaram um dedo, acolá uma orelha; ali o picaram, e aqui finalmente lhe tiraram o coração!!!"[xii].
Não são, todavia, conhecidos (tanto quanto sabemos) quaisquer elementos que possam indiciar o envolvimento de Estanislau de Pina no assassínio do abade de Matança, nas circunstâncias referidas, ou em diversos outros crimes que João Brandão lhe atribuiu, de forma julgada pouco plausível por Dias Ferrão[xiii]. A não se tratar de um equívoco, não é de excluir que João Brandão tenha procurado denegrir a reputação de um adversário político, que acabou por morrer às suas mãos, em 8 de Janeiro de 1850, em condições, no mínimo, pouco claras...[xiv]
Muito mais haverá por certo a investigar sobre o crime que vitimou o abade de Matança, designadamente na documentação coeva[xv]. Aliás, a história da actuação de guerrilheiros e salteadores nas "Terras de Algodres", durante o séc, XIX (para não falar de outros períodos...), está ainda por fazer, sendo conhecidas, apenas, algumas breves referências a episódios isolados[xvi].
Bibliografia:
BONIFÁCIO, M. Fátima, (2002),
A segunda ascensão e queda de Costa Cabral 1847-1851, Lisboa, Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa.
BRANDÃO, João, (1990),
Apontamentos da vida de João Brandão : por ele escritos nas prisões do Limoeiro envolvendo a história da Beira desde 1834, Lisboa, Vega (1ª. ed. em 1870).
CARVALHO, Joaquim Martins de, (1890),
Os assassinos da Beira : novos apontamentos para a historia contemporanea, Coimbra, Imprensa da Universidade.
COSTA, Sousa, (s/d),
Paginas de sangue : Brandões, Marçais & C.ª, Lisboa, Portugal-Brasil, Limitada (1ª. ed. em 1919).
FERRÃO, J. M. Dias, (1928),
João Brandão, Porto, Litografia Nacional.
FERREIRA, Maria de Fátima Sá e Melo, (2002),
Rebeldes e insubmissos : resistências populares ao liberalismo (1834-1844), Porto, Edições Afrontamento.
MARQUES, Mons. Pinheiro, (1938),
Terras de Algodres (concelho de Fornos), Lisboa, Câmara Municipal de Fornos de Algodres.
[i] Cf. MARQUES, 1938, pp. 202-211.
[ii] Cf. MARQUES, 1938, p. 301.
[iii] Cf. FERREIRA, 2002, pp. 216 e 238.
[iv] Cf. COSTA, s/d, pp. 141-142.
[v] Como acima se referiu, é seguro que, em vida, António Macário era conhecido como "Caca" e não "Caco" como alguns lhe vieram a chamar. Dias Ferrão (FERRÃO, 1928, p. 95, nota 1) alvitra que Sousa Costa lhe chamou "Cáco" em Páginas de Sangue "... certamente para não maguar os ouvidos dos seus leitores com a palavra Caca" ...
[vi] A esse respeito, v., em especial: CARVALHO, 1890, pp. 115-134; FERRÃO, 1928, pp. 95-114 e FERREIRA, 2002, pp. 236-253 e p. 543, quadro 30.
[vii] É certo que alguns defendem que após a derrota da "revolta da Serra" e a realização do chamado "convénio de Gavinhos", na sequência do qual os notáveis e chefes mais destacados das guerrilhas miguelistas da Beira Alta abandonaram formalmente a luta, o miguelismo de que se reclamava o Caca não passava de um pretexto para justificar a continuação de uma vida de banditismo, por parte de "operacionais" das antigas guerrilhas que não se conformavam com o regresso às suas anteriores profissões (cf., por ex., CARVALHO, 1890, p. 120 ou FERRÃO, 1928, pp. 87-97). No dizer impressivo de Dias Ferrão: "Já não eram políticos que se juntavam. Eram bandidos que se reuniam" (FERRÃO, 1928, p. 93). Porém, como realça a Prof. Maria de Fátima Ferreira, entre outros elementos, muitas das acções atribuídas ao grupo chefiado por António Macário confirmam as suas motivações políticas, designadamente as que tiveram como alvo autoridades locais ou - como foi o caso de Matança - clérigos liberais, considerados "cismáticos", em relação aos quais manifestou um ódio particularmente intenso, tendo assassinado vários com extrema crueldade (cf. FERREIRA, 2002, pp. 243-245).
[viii] Sobre o "cisma" que então dividia o clero da diocese de Viseu (à semelhança do que se passava noutras dioceses), na sequência do exílio do bispo D. Francisco Alexandre Lobo, afecto a D. Miguel e da imposição, pelo Governo, de um vigário capitular para dirigir a diocese, v.: MARQUES, 1938, pp. 207-208; FERRÃO, 1928, pp. 77-81 e FERREIRA, 2002, p. 245 e pp. 401-424 (em especial pp. 404, 414-419 e 423-424).
[ix] Cf. CARVALHO, 1890, p. 130; no mesmo sentido, FERRÃO, 1928, p. 102 e FERREIRA, 2002, pp. 245.
[x] Cf., por ex., BRANDÃO, 1990, p. 13; CARVALHO, 1890, pp. 131-134 e FERRÃO, 1928, pp. 107-111.
[xi] Cf. BRANDÃO, 1990, p. 212.
[xii] Cf. BRANDÃO, 1990, pp. 51-52.
[xiii] Cf. FERRÃO, 1928, p. 99, nota 1.
[xiv] V., com apreciações não coincidentes, CARVALHO, 1890, pp. 111-114 e FERRÃO, 1928, pp. 154-161.
[xv] A identidade do pároco assassinado, por ex., não aparece mencionada. Na TT OnLine está disponível uma carta de 08-08-1842 (com a ref. RGM/H/200359), com a nomeação de Manuel de Barros para pároco de Matança (Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Registo Geral de Mercês, D. Maria II, liv. 18, fl. 73-73v). Trata-se, provavelmente, da nomeação do sucessor do abade assassinado (a confirmar).
[xvi] Por ex., numa carta de 1-6-1846, dirigida por João Rebelo da Costa Cabral ao irmão, Conde de Tomar, que se encontrava refugiado em Espanha, após a saída do Governo, em Maio desse ano, na sequência da revolta da "Maria da Fonte", é mencionada a insegurança que os membros da família sentiam em Fornos de Algodres e referido que a "Mãe" sofreu "insultos da guerrilha de Gouveia" (Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Arquivo da família Costa Cabral, parte A-I, nº. 28 - cit. in BONIFÁCIO, 2002, p. 21, notas 13 e 14). Mons. Pinheiro Marques dá também conta de um assalto, em 1870, ao solar da família Camelo Fortes, em Algodres, por um grupo de assaltantes armados, "...tendo havido grande fusilaria entre o povo e os assaltantes, de que resultaram muitos feridos..." (cf. MARQUES, 1938, p. 227).
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