A reforma administrativa ameaça tornar o paiz num vulcão.
Conselhos da mais antiga gerarchia, conselhos filhos legitimos de El-Rei D. Diniz, desapparecem na voragem titanica dos cortes administrativos.
O sr. João Franco não respeitando as cans desses Mathusalens da concelhia desses contemporaneos do rei poeta, extermina-os como quem extermina perús em vespera de natal, ou certos bichos em estalagem de provincia.
As consequencias não se fizeram esperar. Fornos dAlgodres protestou.
Mas os senhores fazem lá ideia de que é Fornos dAlgodres a protestar! A terra do alho, a terra em que nasceu o mais armilinico dos escriptores da actualidade, a terra que primeiro contemplou o mais espicolondrifico dos philosophos, a terra que ouviu os primeiros vagidos poeticos do mais espiritual dos poetas, a terra, finalmente, que foi berço de Alberto Cantagallo, não protesta como qualquer outra.
Fornos dAlgodres protesta com energia, protesta á antiga portugueza, protesta furiosamente e até hontem á noite já tinha gasto 775 em telegrammas para o Seculo.
Bem diz o Correio da Noite a revolução alastra..
(in O Antonio Maria, 26 de Julho de 1895, pp. 91 e 94)
Anotação:
Uma das curiosidades que esta sátira suscita, prende-se com a identificação do escritor nela referido como Alberto Cantagallo, alegadamente nascido em Fornos de Algodres.
Tendo em conta o perfil traçado e o nome de Alberto Cantagallo, é de admitir, como hipótese de trabalho, que se trate do escritor, publicista e político Alberto Bramão (D. Alberto Allen Pereira de Sequeira Bramão, 1865-1944), à época já bastante conhecido.
No ano imediato, Alberto Bramão publicou o livro A rir e a sério : o cantagallo (historia veridica de seus feitos) : theatros e touros : verdades e paradoxos (Lisboa, Liv. A. M. Pereira, 1896).
Até ao momento, não consegui, porém, apurar o local de nascimento de Alberto Bramão, informação que é omitida nas notas biográficas publicadas na Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira (vol. 5, p. 20 e v. 39, p. 115) e no Dicionário Cronológico de Autores Portugueses (vol. II) (e ainda não tive possibilidade de consultar o Dicionário de escritores do distrito da Guarda, de Pinharanda Gomes ou outras fontes).
Talvez algum dos amigos leitores possa aqui esclarecer, em comentário, a questão da naturalidade do escritor Alberto Bramão. A ser certo que nasceu em Fornos de Algodres, estaríamos perante mais um ilustre filho do concelho, entretanto esquecido. Caso contrário, haverá que tentar outra interpretação para este texto d O Antonio Maria.
Aditamento: uma dupla paródia (2009-11-10):
Embora continue sem elementos para apurar o local de nascimento do escritor Alberto Bramão, julgo que esta sátira não se referirá, afinal, directamente à sua pessoa, mas sim a uma das suas criações: a personagem Alberto Cantagallo, que parodiava os poetas nefelibatas da época. Tendo começado por ser apresentado em artigos de jornal, o pretenso poeta Alberto Cantagalo teve a sua biografia desenvolvida na primeira parte do livro A rir e a sério, acima citado.
Como ensina Fernando Guimarães (Poética do simbolismo em Portugal, Lisboa, INCM, 1990, pp. 58-59): Outro caso curioso de paródia literária que correu por esta altura diz respeito à publicação de textos poéticos por Alberto Bramão, os quais foram atribuídos a Alberto Cantagalo. Refira-se como curiosidade que em tais textos se chega a explorar formas de natureza caligramática. Num livro publicado postumamente, Últimas Recordações (1945), há uma referência à colaboração de Alberto Bramão no jornal Universal, onde iniciara a sua campanha de troça aos chamados nefelibatas. Foi aí e nas Novidades que apresentou, em artigos com amostras de versos, o grande nefelibata Alberto Cantagalo. Este Cantagalo teria tido existência real, compondo para ele, Alberto Bramão, alguns versos que lhe eram, assim, atribuídos para que pudesse ter como refere êxitos de bobo. Apareceram então nos referidos jornais trechos de poesia aliterante, funílica, piramidal, lunar, e até da poesia humana, isto é, versos do feitio da gente, vendo-se em forma gráfica duas figuras, uma de homem grave e outra de bailarino, para dar as duas modalidades, tristeza e alegria, que são os dois pólos entre os quais se agita o espírito de todos nós (em nota de rodapé: Últimas Recordações, Lisboa, 1945, p. 141.).
Este texto d O Antonio Maria envolverá assim, ao que parece, uma dupla paródia: uma sátira aos protestos do Portugal profundo, que chama à colação a figura caricatural do pseudopoeta Cantagalo, criado por António Bramão.
Logo que me seja possível consultar o livro A rir e a sério : o cantagallo (historia veridica de seus feitos) aqui darei conta das passagens que, eventualmente, se relacionem com Fornos de Algodres.
(in O Antonio Maria, 17 de Agosto de 1882, p. 266)
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